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terça-feira, 11 de maio de 2010

Nossa dívida para com Monteiro Lobato

O texto abaixo foi escrito por Murilo Leme, funcionário aposentado de nosso Banco Central.

Ary Ribeiro, o colunista deste blog, nos informa que a personagem Narizinho foi inspirada na notável pianista brasileira (de São João da Boa Vista-SP) Guiomar Novaes. Ela, quando criança, foi vizinha de Lobato, em São Paulo. Se você vir uma foto da Guiomar, com o nariz arrebitado, chegará à conclusão de que a historinha faz sentido.

Vamos à nossa dívida com Monteiro Lobato


Hoje li, na Wikipedia em português, o artigo acerca da vida de Monteiro Lobato. Há um erro evidente, no fim, quando o texto diz que ele morreu com 66 anos, em vez de 56 anos. O aniversário de nascimento dele foi recente, em 18 de abril; mas não houve festejos óbvios ou comemorações evidentes. Não sei se em Taubaté foi diferente.

Criança, ganhei de meus pais, como presente de aniversário ou de Natal, a coleção completa de contos infantis dele. Devorei os livros e saí, da experiência, modificado pelo resto da vida. Educado, na escola e na igreja, para ser conservador, tornei-me, aos oito ou nove anos de idade, talvez dez, contestador.

E daí? Hoje, ao ler a curta biografia dele na Wikipedia, veio-me à memória o que sentia ao ler as histórias infantis de Monteiro Lobato: a emoção de analisar e contestar. A injustiça da ordem conservadora na qual fui criado tornou-se evidente. A visão rósea da vida transmitida pela igreja, pela sociedade e pela família esboroou-se. A crueldade das instituições ficou clara. Não houve, depois disso, caminho de volta.

Muitos, mas muitos anos depois fizeram uma série na televisão sobre o sítio do Picapau Amarelo. Na série, despiram Monteiro Lobato de toda a sua essência. Uma série sem contestação social, sem crítica, sem a irreverência típica dele. Uma tristeza.

Isso, porém, foi uma experiência pessoal. Logo percebi que contra esse tipo de experiência levantavam-se os conservadores, de várias maneiras. Uma vez li em algum lugar algo como: Monteiro Lobato entretém envenenando. 'Envenenando' significava, obviamente, criticando. Crítica era considerada veneno. Hoje, na biografia dele, vi como o lançaram na prisão e como ele teve de ir para o exterior e no fim da vida não teve mais paz, pois não o deixaram em paz.

Quem é acossado procura onde abrigar-se. Assim, a aproximação de Monteiro Lobato com o partido comunista talvez tenha sido uma reação natural à perseguição que sofria. Lembro-me de que, num dos livros infantis, a avaliação dele do comunismo estava longe de refletir qualquer convicção pessoal. Dizia ele, creio que na voz de Dona Benta, que o comunismo era uma experiência que estava sendo tentada em alguns países; se desse certo, seria provavelmente adotada por outros países; se desse errado, seria abandonada. Não são palavras de um simpatizante visceral do comunismo.

Agora: que critica e contesta raramente contém a linguagem dentro dos contornos traçados, em última análise, pelos conservadores. Uma pessoa que classificou o governo Dutra de 'Estado Novíssimo, no qual a constituição seria pendurada (suspensa) num ganchinho no quarto dos badulaques', usou de uma linguagem que certamente granjeou-lhe críticas.

Meu querido amigo falecido, Coronel Marius Vieira Gonçalves (isso mesmo, o pai da atriz Susana Vieira) contou-me tê-lo visitado na Argentina - conforme a biografia, ele se mudou para Buenos Aires em 1946. Ali, Monteiro Lobato, conta Vieira Gonçalves, estava deprimido, desolado, ou que palavra acharem melhor. Disse algo como 'o Brasil é uma goiaba e eu sou como o bicho de goiaba: a fruta está podre, mas eu não consigo viver fora dela'. Interessante, porque, de experiêcia própria, as pessoas críticas frequentemente são vistas como traidoras do país onde nasceram, sem apego natural ao lugar onde nasceram.

Entretanto, acredito que a dívida dos brasileiros para com Monteiro Lobato exceda, em muito, a particularíssima experiência pessoal que tive ao ler os livros infantis dele e um único livro para adultos - O Presidente Negro. Acredito que, das crianças que o liam, nem todas caíram na história dos que o caracterizavam como alguém que 'entretém envenenando', ou 'diverte envenenando'. Pelo contrário, descobriram a importância de analisar e criticar. Isso pode ter tido influência marcante na relativa abertura em termos de liberdade de opinião de que gozamos hoje.

Hoje, os livros de capa dura verde das coleções infantil e para adultos de Monteiro Lobato existem apenas em minha memória. E ainda enfrento diariamente, em minha família, comentários do tipo 'você parece não pensar em nada positivo, só pensa em criticar', o que mostra a diferença de abordagem das pessoas críticas e não críticas: para o não crítico, a crítica é algo 'negativo', 'destrutivo'; para o crítico, a crítica talvez seja a única coisa positiva do mundo.

Os conservadores não raro levam a melhor porque contam com um aliado extra-argumentação: a conformidade com os delineamentos do palavreado 'adequado', quer dizer, bem comportado. Os críticos de todas as épocas foram repreendidos e censurados porque também sua terminologia não se circunscreve aos limites de gesso da linguagem 'adequada'. Quando Monteiro Lobato fala dos burros, animais de quatro patas, não deixa de mencionar que os burros de duas patas, que infestam ministérios, o governo, câmaras etc. são o verdadeiro problema. Esse tipo de coisa. Isso torna o crítico vulnerável, podendo ser calado não porque sua análise seja incorreta, e sim puramente por seu palavreado, irônico e indignado, exorbitar das fronteiras convencionais.

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