Eliana Cardozo traz-nos uma discussão muito interessante sobre que decisão tomar diante de alternativas e utiliza pensamento de Amartya Sem para guiar-nos nas escolhas. Devo confessar que sou um utilitarista, acho que as coisas fazem sentido pela função que têm em nossas vidas. Assim no caso da flautista, preferiria que ficasse com quem sabe tocar, pois geraria bem estar para todos ouvi-la. De que serve uma flauta, se não for para produzir música? Assim, embora entenda a importância da pluralidade, se tiver de decidir sozinho, escolherei o bom.
Artigo escrito por Eliana Cardozo no Valor Econômico de 25 de fevereiro de 2011.
Amartya Sen debate John Rawls e ilustra o papel de diferentes visões filosóficas no entendimento da justiça. E mais: se existe conflito entre"o bom" e "o certo", como escolher?
Imagine que você tenha de decidir para quem dar a flauta pela qual brigam três crianças - Ana, Bob e Carla. Ana argumenta que é a única das três que sabe tocar o instrumento. Bob afirma que é tão pobre que a flauta seria o seu primeiro brinquedo. Carla revela que trabalhou todos os dias durante o último mês para fabricar com as próprias mãos o instrumento musical. Para qual das três crianças você daria a flauta?
Amartya Sen, prêmio Nobel de Economia, na introdução de "The Idea of Justice" (Harvard University Press, 2009), afirma que você pode dar a flauta para qualquer uma das três crianças. Sua preferência encontraria justificativa em critério objetivo tão imparcial quanto a oferecida por alguém que, por possuir uma persuasão filosófica diferente da sua, escolhesse outra criança. A prova?
O teórico igualitário daria a flauta a Bob, porque quer reduzir as diferenças de renda. O libertário daria a flauta a Carla, porque ela teria direito ao fruto de seu esforço. O utilitarista daria a flauta a Ana, porque, sendo a única que pode tocar flauta, será a que pode extrair maior prazer de sua posse.
Qualquer uma das decisões tem a seu favor fortes argumentos, que se aplicam não apenas à disputa da flauta entre as três crianças, mas também à alocação de recursos na sociedade e aos princípios que norteiam arranjos sociais e escolhas institucionais. Assim sendo, talvez seja impossível um arranjo social a respeito do qual todos concordem, porque ninguém seria capaz de demonstrar que tal arranjo é o único a preencher os requisitos da imparcialidade objetiva.
Mas, se concordamos que existe amplo espaço para desacordo, como garantir que a sociedade prefira uma solução à outra? Existe uma forma de combinar as opiniões e valores individuais numa escolha coletiva que seja a melhor possível?
Sen argumenta que, assim como os consumidores podem ordenar suas preferências, dadas as restrições orçamentárias, nós deveríamos ser capazes de avaliar e ordenar situações sociais alternativas levando em consideração os valores sociais. Poderíamos então avaliar as consequências dessas situações sociais para o bem-estar comum e decidir qual a melhor alternativa.
Para chegar a essa conclusão, Sen parte da crítica da obra de John Rawls, autor de "A Theory of Justice" (Harvard University Press, 1971). Rawls demonstra que a justiça requer que a sociedade seja governada por princípios sobre os quais pessoas livres, racionais e em situação de igualdade estariam de acordo.
Considere o argumento de Rawls. Imagine a situação em que cada um de nós se encontra antes de nascer, ignorante de seus dotes pessoais e das particularidades da situação que ocupará na sociedade em que vai viver. Imagine que dessa "posição original" pudéssemos entrar em acordo sobre os princípios de justiça que deveriam reger a sociedade à qual iremos pertencer. Rawls demonstra que o acordo seria tal que preencheria três princípios. O primeiro garantiria a todos a liberdade de consciência, pensamento e expressão, a liberdade de associação e a igualdade política. O segundo princípio atribuiria a todos a igualdade de oportunidade para desenvolver os próprios talentos e competir por posições sociais. O terceiro princípio exigiria que a sociedade enfrentasse as desigualdades econômicas transferindo renda para os mais pobres.
A principal crítica que Sen faz da teoria de Rawls é que ela é "transcendentalista", isto é, usa princípios universais para criar a sociedade ideal que seria perfeitamente justa. Sen, que está interessado em tratar das injustiças observadas no mundo de hoje, considera que tal teoria é irrelevante.
Será? Sen parece se esquecer que a idealização da sociedade perfeita é um passo importante, porque permite o uso de um filtro, que deixa de lado considerações irrelevantes, para se concentrar nos fatores que de fato determinam a justiça social. Muitas questões de reformas e políticas sociais precisam dos fundamentos da teoria ideal de justiça para sua elucidação.
A contraproposta de análise comparativa que Sen oferece talvez possa ser usada nas deliberações legislativas em que os congressistas precisam fechar acordos. Mas mesmo a legislação que resulta desses acordos e compromissos é produto de propostas alternativas baseadas em justificações de princípio.
As discussões de políticas para a educação utilizam o princípio de igualdade de oportunidades de Rawls. E seu princípio de enfrentamento das desigualdades através da assistência aos grupos mais pobres é invocado com frequência para contrabalançar o utilitarismo: os governos não devem perseguir apenas a maximização da riqueza nacional, mas precisam tomar em consideração as consequências de suas políticas para os grupos mais pobres e cuidar para que seus benefícios cheguem a eles.
A divergência entre Sen e Rawls se encaixa na tradição que distingue "o bom" e "o certo". Os "consequencialistas" (preocupados com o que é bom para os homens) dizem que a justiça requer instituições que promovam o máximo de bem-estar para a maioria da população. Os "deontologistas" (preocupados com o que é certo) dizem que a justiça deve restringir os meios utilizados na conquista do bem-estar e impor o respeito aos direitos individuais e à distribuição equitativa. Rawls (como outros kantianos promotores do contrato social) são deontólogos. Sen (como os utilitaristas) pende para o consequencialismo.
Sen ilustra o dilema com o diálogo entre Arjuna - o grande guerreiro do épico "Mahabharata"- e seu amigo e conselheiro, Krishna, na véspera da batalha em Kurukshetra. A batalha será entre os Pandavas, de cuja virtuosa família real Arjuna é membro, e os Kauravas, seus primos, que usurparam o trono. Arjuna é o guerreiro invencível que deve liderar os Pandavas e Krishna - a encarnação em forma humana de um deus indiano - conduz o veículo de Arjuna.
Arjuna e Krishna observam os exércitos dos dois lados e refletem sobre a gigantesca batalha que terá lugar no dia seguinte. Arjuna então se pergunta se deve lutar. Ele não duvida de que está defendendo uma causa justa e que vencerá a batalha. Mas as mortes serão numerosas e ele terá que matar muitas pessoas que nada fizeram de errado, exceto divergir sobre quem deveria ocupar o trono e, muitas vezes, o fizeram por lealdade e laços de família. Sua ansiedade reflete não apenas a repugnância pela carnificina, mas um sentimento de horror pelas mortes de pessoas com quem tem ligação de parentesco ou amizade e pelas quais será pessoalmente responsável. Arjuna sugere que se sente disposto a desistir da batalha e deixar os Kauravas reinar.
Krishna se opõe. Seu argumento se concentra na prioridade do dever, sejam quais forem as consequências dos atos ditados por ele. Argumenta que Arjuna terá de cumpri-lo, aconteça o que acontecer. A causa é justa. Arjuna é o general do qual seu exército depende e, portanto, não pode fugir de suas obrigações.
O diálogo continua e cada um desfia seus argumentos até que Arjuna reconhece que Krishna tem razão. O discurso de Krishna se tornou tão influente que até Gandhi, o maior defensor da não-violência, se dizia inspirado pelas palavras de Krishna sobre o cumprimento do dever.
Sen, entretanto, pergunta se era Arjuna quem estava de fato errado. Será que a crença no cumprimento do dever de lutar por uma causa justa independe de suas consequências? Será que o dever pode dominar o desejo de não querer matar outras pessoas?
São perguntas difíceis. Mais difíceis do que encontrar a representação pictórica adequada à justiça. Em 1625, Rubens a pintou como uma mulher roliça, de espada na mão, a esmagar uma cobra com o pé. Um cordeiro se aconchega ao seu lado direito, enquanto, do outro lado, uma raposa se põe em fuga. Mas, na década de 1930, Ellsworth Kelly preferiu representá-la pelo equilíbrio entre painéis quadrados de cores diferentes na parede oval da corte de Boston. Dessa forma, o espectador poderia criar seus próprios significados.
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sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011
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